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domingo, 11 de outubro de 2015


Outra vez Eucanaã Ferraz! 


Eucanaã Ferraz


No princípio deste ano falei sobre o poeta. Volto, agora, pois estava relendo um de seus livros, Rua do Mundo, e sempre que isso acontece admiro mais sua obra.





O poema abaixo, que está nesse livro, é um dos que mais gosto:



A questão
Como decidir do desejo?
Algum padrão diz do que
e de quanto vive?

Ele vive do que deseja?
É uma necessidade?
Subsiste no fundo do tempo?

Faz-se num minuto? Morre
no outro? Perdura uma existência inteira?
O desejo que não desejamos,

refreá-lo como? Respiramos.
Há interromper-lhe o passo?
O desejo nos ouve?

É cego? É doido? O desejo vê
mais que tudo? São os nossos
os seus olhos? Se os fechamos,

ele finda? Quem pôs o desejo em nós?
Onde está posto? E onde não?
Penetra o sonho, o trabalho, infiltra

nos livros, no óbvio, nos óculos,
na cervical, na segunda-feira e os versos
não sabem outro tema.

Há quem não deseje?
Tudo o que vive deseja?
Faça-se o exercício: não desejar,

por um mês, uma semana,
um dia. O desejo fabrica-se
de nenhum aval? Ele não teme?

Não receia o sal à face da razão?
Não teme a dor, decerto, que dela
parece, por vezes, primo-irmão.

E perguntamos, perplexos. O desejo
é uma forma oblíqua de alegria? Brinca
conosco? Mas, brincarmos com ele,

ai de nós, é de seus truques
o mais fatal. Morremos de desejo?
Com ele removemos pedras?

Por ele removemos montanhas?
Pode o desejo mover o não?
(O não: esta seta o mata?

Ou esta farpa fomenta o que nele nos ultrapassa
e que, sem nome nem fim, não desistirá
senão quando tudo morto em nós?)

Química tão secreta,
não vale a pena qualquer pesquisa,
uma pluma, este poema.


Rua do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 



Eucanaã nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É professor de Literatura Brasileira na UFRJ, ensaísta e autor de diversos livros de poesia. É ganhador do Premio Portugal Telecom Poesia, de 2013, entre outros.


Mais um poema:

Via
Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho, cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes

do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.

Rua do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 


Este ano ele lançou novo livro "Escuta"


O site do poeta é www.eucanaaferraz.com.br








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